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Histórias de trabalhadores na região de arranha-céus e que não para de crescer
MARMITA

     Era uma vez uma cidade com renda per capita de R$ 3.3 mil. Uma raridade para um país em que a renda média é R$ 1.373 mil. Nas ruas há mais carros que pessoas a passear. Na imensidão de prédios, não há como detalhar/contar os 722 edifícios. Pessoas se encontram e desencontram nos elevadores. Quase não há lugar de tantos carros que disputam espaço. As duas ruas principais que cortam a cidade tiveram seus nomes inspirados em plantas, Arniqueiras e Araucárias. Mas as árvores são raras nesse lugar. A cidade não para. Mas, antes do trabalho o bichinho de estimação é o primeiro a descer. Os comércios ficam abertos 24 horas. Era uma vez esse lugar. Águas Claras poderia ser o cenário privilegiado para 178.823 habitantes. Mas esqueça tudo isso. Esse mesmo lugar é fonte de renda para famílias que vêm de outras regiões administrativas e estados a fim de garantir seu sustento.

     Ceilândia, Taguatinga, Areal, Arniqueiras, e Guará são regiões que cercam Águas Claras e ajudam na expansão do mercado de trabalho. Com 26 anos de existência, e 15 de emancipação, Águas Claras tornou-se um local de grande procura por possuir imóveis novos, e com preço menor se comparado ao Plano Piloto. Seu nome é uma referência ao córrego de Águas Claras que nasceu na região e abastece o Lago Paranoá. Sexta-feira, dia 12 de abril de 2019, o sol não perdoa quem está nas ruas. A cidade continua com o vai e vem de carros e construções a todo vapor. É possível ouvir o barulho das marteladas e furadeiras a qualquer momento, até mesmo de madrugada. Valda Figueiro, 37 anos, vende marmitas a 10 reais de segunda a sexta. Os principais clientes são profissionais da construção civil, que se esforçam para levantar prédios, mas não conseguiriam morar neles com o salário que recebem.
     Moradora de Arniqueiras, RA vizinha entrecortada pelos trilhos do metrô e que está em processo de regularização, Valda começou sua jornada como funcionária de uma profissional que fazia marmitas e só utilizava sua mão de obra como vendedora. O primeiro ano do trabalho foi um sucesso, após isso, ficou doente e precisou parar. Mas, a necessidade fez Valda retornar a sua rotina que dura de 11h às 14h nos dias de semana. Atualmente vem trabalhar de carro e demora 10 minutos para chegar. Porém, nem sempre foi assim. Com a mão estendida em cima do balcão que serve os clientes, ela conta que precisou vir de ônibus várias vezes. “Só existe uma linha que passa aqui, ai demora demais”, relata. 
     Era aproximadamente meio dia. Valda estava atrás do isopor que contém as marmitas e o suco que acompanha a refeição. Durante a conversa, um homem de blusa branca e calça jeans se aproxima com o intuito de realizar a comprar do seu almoço. Antonio Emiliano, 50 anos, é bombeiro hidráulico e se lembra dos ingredientes que tinham na marmita que comeu pela primeira vez. “Carne de gado, arroz, feijão e macarrão”, completa. Ao entregar o dinheiro para Valda e pegar sua feijoada, ele diz que indica a marmita para outras pessoas, e por isso sempre volta desde que comeu a carne de gado. Antônio pegou o troco, atravessou a rua, e sentou no chão para almoçar ao lado do amigo que já estava a mastigar.

“Demora uns 40 minutos de ônibus"

“Demora uns 40 minutos de ônibus”

     As rodovias que cortam Águas Claras, como o Pistão Sul e a Estrada Parque Taguatinga (EPTG) começam a lotar por volta de 7h da manhã. Por causa desse movimento foram criadas as faixas reversas para transportes públicos em horários de pico. As estações de metrô Arniqueiras, Águas Claras e Concessionárias permanecem lotadas até o meio da manhã, 10h30, que é considerado horário de pico. Momento que a maioria dos trabalhadores e estudantes já chegaram em seus destinos. Porém, a realidade de quem pega a BR-020 para atravessar o Goiás e chegar a Águas Claras, Distrito Federal, não é comum para os moradores que saem rumo ao Plano Piloto. Quem sai de Águas Claras não tem a mesma realidade de quem chega ao “bairro dos contrastes”.

     A Administração Regional de Águas Claras garante que se preocupa em oferecer uma boa qualidade de vida para os moradores. Além de segurança e lazer, sete opções de instituições públicas para estudar estão disponíveis nos arredores. Mas, dentre essas, somente uma está localizada na própria região. O Centro de Educação de Primeira Infância, CEPI Jequitibá, foi inaugurado em 1º de janeiro de 2016. Desde 2018 atende 136 crianças de até 05 anos, em período integral de 7h30 às 17h30, de segunda a sexta-feira. Os colégios públicos mais próximos são o Regional de Ensino de Taguatinga e Centro de Ensino Fundamental Vila Areal.

     A babá Denise Miguel, 25 anos, trabalha  sozinha para garantir a educação e o bem estar das duas filhas de sua patroa que reside em Águas Claras. Moradora da cidade Santo Antônio do Descoberto (GO), a 47 quilômetros da capital federal, a babá relata que vai trabalhar de carro, pois consegue pegar carona com o marido, e isso torna o trajeto menos cansativo. Além de todo esforço diário, ela encontra motivação para estudar enfermagem e batalhar com o objetivo de ter um futuro melhor. “Gosto muito do meu trabalho. Sou babá de duas meninas e por indicação de uma amiga fiz entrevista e acabou dando certo. Penso no meu futuro, numa vida melhor.” Universitária de enfermagem, a moça conta que pretende se especializar em neonatologia para cuidar de bebês. 
 

"Gosto muito do meu trabalho, sou babá de duas meninas" Denise Miguel - Arquivo Pessoal

     Em busca de realizar um sonho, Denise acorda às 5h. A graduação é parte presencial e parte à distância. Nos dias de aula no campus, a moça caminha na ida, e volta de ônibus para o local de trabalho. Ela mora durante a semana no trabalho, e busca recarregar as energias dormindo na casa da patroa. Distante 35 quilômetros de Denise, o lavador e cuidador de carros Leandro* não teve a mesma sorte. Nascido e criado na Ceilândia (região com a maior população do DF), o rapaz tem 20 anos, e é morador da cidade de Águas Lindas de Goiás (GO) por não “poder voltar a sua quebrada”, como diz. Em parceria com o dono de um lava-jato, Leandro trabalha embaixo de uma tenda vermelha e aborda os clientes que passam a pé. Localizado em frente a um shopping de Águas Claras, o estacionamento possui maior rotatividade aos finais de semana. 
     Além disso, o ativo rapaz redobra a atenção para os carros que entram e saem a fim de conseguir uma gorjeta. Antes trabalhava com obras, mais especificamente com gesso. Ele explica que fazia casas de gesso, e até mesmo pinturas para conseguir um troco a mais. Na profissão atual, ele está há menos de um ano. Conseguiu o emprego através de um amigo que precisava de ajuda com os carros. A partir disso, foi um dia ao local e não parou mais. Jovem, Leandro tem uma filha de 6 meses para sustentar, mas diz que às vezes gosta e às vezes não gosta do que faz. “Tem dias que são movimentados, e o que aparece pra fazer, eu faço. Mas, às vezes penso em voltar para vida do crime.”
     Era por volta de 17h e Leandro estava apreensivo para terminar a lavagem do pálio branco. Embaixo da lona que trabalha, o sol entra e incomoda cada vez mais os seus olhos. Assim, questiono o rapaz sobre a vida que tinha antes, no mundo do crime. Ele conta que sua mãe sofreu demais, que ficava louca, pois ele dava muito trabalho e sempre estava preso. Mas, chegou um tempo que precisou sossegar. Diferente dos amigos que continuam porque acham que essa realidade vale mais a pena do que possuir um trabalho fixo. “Na verdade é como dizem na favela, amigo de verdade a gente conta no dedo”, completa o rapaz, após lembranças tomarem conta de sua mente. 

     Mesmo com pouca idade, a obrigação da casa e as despesas estão em suas mãos. A esposa de Leandro estuda, e não tem tempo para trabalhar. “O que me motiva a vir é minha filha né, a família mesmo. O que tiver que fazer, eu vou fazer”, garante o rapaz que acorda às 5h para dar tempo de pegar o ônibus que demora cerca de 40 minutos a 1 hora, até chegar em Águas Claras. Ele diz que não chega antes das 8h, porque o estacionamento está vazio e sem carros. Mas, depois que começa a labuta, só para por volta das 19h30. Após ganhar uma oportunidade no lava-jato, o jovem disputa o ambiente com outras três pessoas, para garantir a comida na mesa.

“Meu sonho é viver da música”

     A vida noturna em Águas Claras é movimentada. A região é considerada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) como um dos locais de classe média-alta, após a publicação da  Pesquisa Distrital de Amostra por Domicílios no ano de 2018. Águas Claras possui bares, restaurantes, farmácias, mercados, e até hospitais veterinários em funcionamento por 24 horas. De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no DF (Abrasel-DF) o setor de bares e restaurantes voltou a crescer em 2019. Cerca de 2,5 mil pessoas foram empregadas desde o início do ano. O segmento está no mesmo patamar da construção civil que ferve no DF, principalmente em Águas Claras.

     Mas, há quem ganhe seu sustento para garantir tranquilidade e segurança aos moradores da região administrativa em meio a rotatividade. É o caso do porteiro José Carlos Simão, 50 anos, que trabalha em um condomínio residencial. Vigilante noturno, o moço presta serviço das 19h às 7h. Sua profissão conta com escala de 12 horas de serviço por 36 horas de descanso. José iniciou a carreira na área de serviços gerais, e como porteiro está ativo há 5 anos. Quando trabalhava durante o dia, das 8h às 17h ele buscava complementar a renda em outro tom, como músico em casas noturnas de Taguatinga, onde mora. 

     No local da labuta, onde não há microfone nem público, José, de terno completo e sapato social redobra a atenção para as 40 câmeras que o condomínio possui. Dentre elas, as duas portarias do prédio, a entrada da garagem, e os espaços de lazer são os ambientes mais vigiados. Sozinho, ele faz a ronda, ajuda moradores que interfonam, entra em contato com o síndico caso haja algum problema, fecha a academia após meia noite, entre outras tarefas que ele decorou como parte de uma rotina que não permite fechar os olhos. Porém, esse não era o seu sonho. Há mais de 30 anos na luta, ele diz que seu desejo mesmo era conseguir viver como cantor sertanejo. “A música enfraqueceu nos bares em relação aos cachês. O salário que entrava era um pouco mais de R$ 1 mil. E quando você tem família, existe a necessidade de arrumar outra coisa (para trabalhar). Gostaria de viver da música, mas hoje em dia, não dá mais”. Ele continua cantando nos bares e baixinho enquanto verifica se está tudo em ordem no prédio em que trabalha.
      Morador da Avenida Samdu Norte, ele demora cerca de 15 minutos para chegar ao local de trabalho sem trânsito, pois se desloca de carro. “Não sei se você sabe, mas carro, quando é velho, a gente chama de condução. Ele me ajuda muito”, destaca o moço enquanto ri do apelido que dá ao seu veículo. Quando o turno acaba pela manhã, ele precisa correr para deixar os filhos na escola. Porém, nem sempre consegue desviar do trânsito. Além das vias principais de Águas Claras estarem engarrafadas, o caminho para Taguatinga também é caótico. Mas isso não desanima José que gosta de labutar nas madrugadas. “Meu trabalho é tranquilo. A partir do momento que você acostuma, é fácil. A maior dificuldade que enfrento é o sono. Mas, eu gosto muito da calmaria da noite”. Uma música para os ouvidos.

​     O porteiro não utiliza transporte público para trabalhar, porém essa não é a realidade da maioria dos proletários de Águas Claras. O sistema de transporte coletivo de Brasília está estruturado com 833 linhas. Mesmo que o DF tenha 2.816 ônibus em circulação, a frota que José necessita não passa regularmente, e quando passa, demora o dobro do tempo. “Não dá para esperar 50 minutos da minha casa para o condomínio. E, aos finais de semana, é ainda pior porque demora de duas a três horas”, relata. Os trilhos do metrô que cortam a cidade de Águas Claras, de um extremo ao outro, dividindo os bairros Sul e Norte, não funcionam para todos. José mora na metade da Samdu Norte e o metrô não está acessível para ele. 
     Além do mais, o funcionário lamenta que não conseguiu terminar os estudos. “Devido à necessidade de trabalhar, parei no segundo ano, do segundo grau. A gente sabe que o salário do terceirizado não é lá essas coisas. Mas, como não estudei para ganhar melhor, não vou reclamar de barriga cheia”. O número de pessoas desempregadas no Distrito Federal só aumenta. Em janeiro de 2019, 308 mil brasilienses estavam sem emprego. Já em fevereiro, o número subiu para 314 mil pessoas, segundo dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). José conseguiu o emprego atual através de indicação.

“Meu sonho é viver da música”

“O importante é sustentar minha família”

    Max Home, Península, Fernando de Noronha, Atlântico Norte, Montserrat, Maison Exclusive, Atol das Rocas, Lumini, Via Terrazzo, Real Celebration e Riviera dei Fiori são condomínios luxuosos na região de Águas Claras que a maioria dos trabalhadores de empresas terceirizadas, não teriam condições de morar. Apartamentos custam mais de R$ 1 milhão, e a taxa de condomínio supera o valor de um salário mínimo. As áreas residenciais contam com o apoio do serviço terceirizado para manter a limpeza e a segurança do local. No momento de dividir as funções e os turnos, o nível de escolaridade é um fator fundamental no ambiente empregatício. A auxiliar administrativa Karen Kriebel, 48 anos, mora atualmente em Ceilândia com a filha de 18 anos. Nascida em Nova Friburgo (RJ), região da Serra Fluminense, Karen veio para Brasília se graduar com o intuito de ter uma vida melhor. Ela concluiu o curso de pedagogia em uma universidade particular em Taguatinga.     
     Segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios de 2016 (PDAD) em Águas Claras, 53,13% da população possui o nível superior (especialização, mestrado e doutorado) completo. Karen acompanha o nível de escolaridade da região, mesmo sendo moradora de outro local. Após a conclusão do curso de pedagogia, ela conseguiu emprego na área em Organizações Não Governamentais (ONGs), mas a vida tomou outro rumo. Sem saber explicar como e por que chegou ao trabalho atual, que nada tem a ver com sua formação, ela garante que o importante é “conseguir dinheiro para sustentar a casa e a filha”, que são dependentes do salário que ganha. “O salário que recebo não daria para morar em algum condomínio legal aqui de Águas Claras para ficar mais perto do trabalho”, relata a assistente administrativa.
      A funcionária se desloca da Ceilândia Sul para Águas Claras de metrô ou de ônibus. Ceilândia foi inaugurada em 21 de março de 1971, e seu nome vem da sigla CEI que significa Campanha de Erradicação de Invasões. A ação foi criada pela esposa do ex governador Hélio Prates para ajudar pessoas como Karen que vinham para Brasília com sonhos de mudar de vida na capital. A avenida que cruza Taguatinga e Ceilândia, denominada Hélio Prates, é uma homenagem a ele. Em 30 minutos, Karen chega para o expediente que começa 8h e termina 17h. Além disso, ela anda cerca de 15 minutos da estação de metrô até o condomínio, que fica um pouco distante. Quando vem de ônibus, o tempo médio é de 45 minutos. Mas, a parada de ônibus que confirma o fim do trajeto é próxima ao local de trabalho. Com escritório próprio e computador, Karen desenvolve suas funções junto ao síndico. “Cuido de toda parte burocrática, pagamento de contas, comunicados, documentação de moradores e de prestadores de serviço, toda parte documental”, completa a terceirizada. 
     Entretanto, nem todos os terceirizados conseguem trabalhar dentro de escritórios. Vassoura, rodo, panos, luvas e produtos químicos compõem a realidade do Janielson Borges, 25 anos, prestador de serviços gerais em Águas Claras. Através de um amigo que conhecia o dono do estabelecimento de limpeza, Janielson conseguiu o emprego após passar seis meses desempregado. No começo, o trabalho era só um ‘bico’, mas após dois meses sua carteira foi assinada e o moço pôde respirar aliviado. “Meu trabalho é pesado. Tem dia que tem faxina geral e cansa. Mas qualquer coisa que manda a gente faz”, relata o trabalhador. Morador do Areal (bairro com imóveis mais simples, e grudado em Águas Claras), ele costuma ir para o serviço de moto e demora cerca de 20 a 25 minutos. Porém, quando acontece algum problema com o veículo, ele tem que se render ao transporte público e só chega ao trabalho após longa 1 hora e 30 minutos de espera. 

"Meu trabalho é pesado"

Janielson, 25

"Ando cerca de 15 minutos para chegar no condomínio"

Karen, 48

     Mesmo que o Areal fique ao lado de Águas Claras, o transporte ainda deixa a desejar. Como a RA não possui metrô, o deslocamento é mais complicado. O setor habitacional Areal não foi regularizado pelo governo ainda. Mas, a região conta com investimentos na saúde pública e na educação. A parte educacional possui duas escolas públicas, um Centro Infantil, a Creche Irmã Celeste e uma Escola técnica. De acordo com a PDAD 2016, o percentual de pessoas que possuem o ensino superior completo no Areal é de 16,56%. Isso representa cerca de 36,57% a menos que Águas Claras. Já a saúde pública conta com o Centro de Saúde do Areal e uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Para os moradores de Águas Claras, essa realidade é diferente já que não existe escola pública (Ensino Fundamental e Médio) e posto de saúde.  
     Janielson Borges acha que Águas Claras é um bom lugar para trabalhar. Mesmo que o auxiliar tenha que acordar 6h40 para não se atrasar, permanecer neste trabalho significa garantir as contas em dia, e o futuro de dois filhos. O trabalho também se inicia 8h e termina 17h. Mas, dependendo do final de semana, Janielson não tem descanso. Ele retorna para o condomínio onde trabalha um sábado sim, e um domingo não. Um sábado não, e um domingo sim. “A maioria dos meus amigos trabalham em Águas Claras, aqui é bom para arrumar serviço. E todos estão na área de serviços gerais, fazendo de tudo um pouco”, destaca. Mas, ele não é o único que se esforça para ganhar dinheiro. Sua esposa cuida de idosos que moram no Pistão Sul, bairro da Região Administrativa de Taguatinga.  

“O importante é sustentar minha família”

“Com o salário que recebo daria para morar em Águas Claras”

     A vida na cidade de média-alta renda é corrida para a maioria dos trabalhadores que vem de fora. Com o vai e vem de estudantes que frequentam escolas e faculdades, há quem aproveite essa situação para vender lanches, marmitas, e até fast foods. Ao lado do estacionamento de uma faculdade particular, Igor Pereira, 23 anos estende a bancada no início da noite que contém salgados, sanduíches, e molhos para clientes que compram o produto. Morador do Recanto das Emas, cidade de baixa renda, ele se dispõe a trabalhar de manhã e à noite para receber um salário mensal. Ele paga os estudos com a venda de comida. Na pressa, alunos passam e compram os alimentos por 4 reais, que vem acompanhado de um copo de suco ou refrigerante. 

     Na parte noturna, o vendedor fica de 18h às 22h na porta de uma universidade particular em Águas Claras para atender. Mas, pela manhã, o negócio se estende à outra porta de faculdade, localizada no Pistão Sul. Igor cumpre o horário de 6h às 12h. Em parceria com a tia, dona do investimento, ele gosta de fazer o que faz, e consegue pagar a graduação de gestão pública a distância. Além disso, o salário ajuda a custear os gastos com a filha. “Se eu não tivesse filha e fosse casado, o que ganho daria para morar aqui em Águas Claras tranquilo, de ‘boa’, com certeza”, cita o trabalhador. Quando ingressou nos negócios de família, Igor utilizava transporte público e demorava 40 minutos para chegar em Águas Claras. Hoje, de carro, o tempo caiu pela metade. Igor gasta em média R$ 40 por dia para abastecer o carro em que transporta salgados assados e fritos, e a esperança de vender bem toda noite. 
     No estacionamento de brita, onde alunos param carros da faculdade particular, não há vagas para todo mundo que chega. Igor não sonha estudar em um lugar assim. As aulas noturnas conseguem lotar o espaço. Mas, em meio ao tumulto e lotes abandonados, o food truck da Gabi chama atenção pelas cores vibrantes. Assim como Igor, Alzenir De Brito, 43 anos, decidiu empreender no ramo alimentício para pagar suas contas. Alunos e moradores dos condomínios ao redor são os principais clientes que compram cachorro quente no molho ou na chapa por R$ 6. Moradora de Vicente Pires, Alzenir já foi nomeada para cargos de comissão do governo. Porém, na troca de governo de 2010, ela perdeu o emprego e precisou se ‘virar’. A ideia de comprar uma chapa e vender cachorro quente na frente de faculdades partiu da sugestão de uma colega. Com o tempo, o negócio evoluiu e a moça teve condições de comprar um espaço móvel que logo ganharia as ruas de Águas Claras.

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     O nome do negócio “Dog da Gabi” nada tem a ver com seu nome de registro. O apelido que a moça possui desde a infância era um dos desejos de seus pais, que escolheram por outro na certidão de nascimento, explica enquanto senta no banco que clientes usam para lanchar. A distância de 5 minutos divide a casa do trabalho. Assim, o custo com combustível não pesa no bolso. Atualmente, Alzenir trabalha na Secretaria de Transporte e Turismo, e o marido fica responsável por “tocar” o negócio, enquanto ela administra nos bastidores da cozinha. O dia dela é longo. “O governo regularizou nosso trabalho. Não pode ter mais trailer móvel aqui, tem que ser quiosque. O food truck atende de 110 a 120 alunos por dia”, relata. O filho fica perto da mãe. O trabalho noturno começa 17h e termina 21h30. Mas, pela manhã, o empreendimento bate ponto no estacionamento da mesma forma de 7h às 11h. 

“Com o salário que recebo daria para morar em Águas Claras”

“Águas Claras é um lugar carente de lavagem de carro”

     Na imensidão de prédios, 58% dos moradores de média-alta renda se transportam de carro para o serviço. Estacionamentos de Águas Claras ficam lotados. Aos finais de semana isso é mais visível. As ciclovias construídas na região não atendem a todos. Carros são prioridades. O conforto é necessário. As ruas não conseguem englobar os automóveis. É preciso esperar horas e horas no trânsito para desembarcar em casa. Essa é a realidade de famílias que ganham acima de R$ 3 mil. No calendário, a folha marca 12 de abril de 2019. No relógio de pulso, são 17h. Na nuvem, um sinal de que o trânsito vai espernear até a chegada. Chove em Águas Claras. Carros se deslocam e jogam água em quem está a pé. A chuva não dá trégua. Mas, Valdir Alves, acorda antes das 6h, enche o barril de água, coloca na caçamba de seu carro, e vai em direção aos moradores de Águas Claras para realizar o serviço. Trabalhar na rua para o moço é o que vale a pena. Ele se aperta comigo sob o guarda-chuva para resumir o dia que foi longo.

     Como estava desempregado, Valdir sentia que precisava fazer algo. Antes trabalhava como frentista e encontrou  na região a oportunidade de ganhar dinheiro. Aos 39 anos, o moço teve a ideia de abrir um lava-jato. Quando ia para a rua se deparava com esse tipo de emprego, e decidiu começar. Morador do Park Way, Valdir não está em seu melhor momento. O tempo de chuva no mês de Abril tem atrapalhado as lavagens. “Quando está sol, não dá para lavar todos os carros que chegam aqui, é um movimento grande”. Em frente à Administração Regional de Águas Claras, o lava-jato de Valdir aproveita o estacionamento público para fazer dinheiro. Os carros ficam parados do lado direito, enquanto ele e três funcionários colocam a mão na massa. 
     “Águas Claras é um lugar carente de lavagem porque aqui tem muitos carros. Então, não tinha o porque escolher outra região, as pessoas aqui tem dinheiro”, diz o moço. Valdir gosta do que faz, mas sente falta da regularização. Para ele, a administração deveria apoiar pessoas que tem vontade de trabalhar, pois é algo honesto. Sua esposa também trabalha. Os dois conhecem muita gente por Brasília. “Meu Whatsapp deve ter umas 3 mil pessoas. Na época em que minha filha nasceu, eu ganhei muita fralda de cliente. Eles acabam virando nossos amigos,” destaca. Antes de colocar o seu empreendimento perto da Administração Regional de Águas Claras, ele trabalhava no shopping Maggiore.
     No espaço antigo, o lava-jato tinha o dobro de funcionários. Após reclamações por parte do shopping, Valdir precisou deixar o local antes que a vigilância fosse acionada. Mas o moço se reinventou. Logo encontrou um lugar novo. A água que ele deposita no barril para lavagem é despejada no lote ao lado do estacionamento que está vazio. Os preços variam de acordo com o tamanho dos carros. O menor é R$ 30, enquanto os maiores podem chegar a R$ 60. Valdir lamenta que o funcionário esteja em ‘segundo lugar’ na mente de alguns clientes. Mas, quando ocorre algum desentendimento, ele prefere resolver no diálogo. “Às vezes, a gente fala e a pessoa não gosta. Dependendo do cliente, tem que saber lidar,” diz o moço. 
     Trabalhadores estão espalhados pelas ruas que cortam Águas Claras. As avenidas Castanheiras e Araucárias que operam em sentido inverso, também demonstram a grande desigualdade financeira dos que passam por elas. Valdir, Valda, Antônio, Denise, Leandro, José, Karen, Janielson, Igor e Alzenir fazem parte dos 49,03% que possuem emprego remunerado na Região administrativa de Águas Claras, segundo a Pesquisa Distrital de Amostra por Domicílios (PDAD) 2016, mas que não moram em um dos 1.142 lotes construídos. Eles são dez trabalhadores que refletem um dos contrastes existentes no DF, e no Brasil afora.

“Águas Claras é um lugar carente de lavagem de carro”
DESIGUALDADE

“Águas Claras representa a desigualdade de forma humilhante”, diz urbanista

     O arquiteto e urbanista Frederico Flósculo entende que a Região Administrativa de Águas Claras traz elementos que misturam contrastes sociais e econômicos. “Águas Claras foi concebida nos anos 80 como uma cidade metroviária, uma organização urbana que cresceria ao longo de um eixo de transporte de massa”. Esse é também o conceito que orientou o projeto de Lúcio Costa para o Plano Piloto de Brasília durante os anos 50/60.
     Nesse sentido, haveria semelhanças entre o plano de Águas Claras e o Plano Piloto, do arquiteto Lucio Costa. “Devemos considerar que o concurso do Plano Piloto de 1957 foi feito para orientar o início e o crescimento da capital do Brasil. Brasília deveria ter crescido sem as severas desigualdades e disfuncionalidades que passou apresentar na realidade, em seu desenvolvimento histórico. Também nesse sentido, Águas Claras representa a desigualdade de forma humilhante se considerarmos sua acentuada verticalização e a rapidez de seu crescimento nas últimas duas décadas, assim como a qualidade de sua estrutura de serviços e de organização urbana”, afirma Flósculo. 
     O professor da Universidade de Brasília lamenta que Águas Claras também se tornou evidência do quanto a capital do Brasil não consegue promover a qualidade de vida da maioria de sua população de mais de 2,5 milhões de habitantes. O melhor de sua urbanidade, explica o especialista, está restrito a uma minoria de algumas centenas de milhares de pessoas. Hoje, o Distrito Federal conta com mais de vinte Regiões Administrativas em funcionamento para abraçar a população que não consegue morar no berço da capital.

“Um experimento distorcido”

     Frederico Flósculo considera que a formação de Águas Claras é um “ganho que se tornou uma perda”, já que seria importante que os novos bairros de Brasília fossem experimentais e criassem “novas urbanidades”. E seria uma perda porque o bairro foi construído sobre mananciais preciosos para o abastecimento freático da cidade e não foi pensado para ter “autonomia econômica e equipamentos públicos que realmente dessem suporte a sua população”. 
     Como a região de média-alta renda está cercada por locais que possuem políticas públicas eficientes, os moradores precisam recorrer às cidades vizinhas. “É um experimento distorcido apesar de aparentemente bem sucedido pelo imenso volume de mercadoria imobiliária que ostenta. Seus ricos vivem em meio a uma grande pobreza de equipamentos públicos, pois Águas Claras não tem sequer um grande hospital público ou uma grande escola pública. O grande centro administrativo público, assim como espaços públicos de qualidade é um bairro angustiado em meio a sua grandeza”.
     O especialista considera o  projeto original “excelente”, já que seria formada por prédios que não passariam de 6 pavimentos. “Nesse sentido, para mim que sou professor de arquitetura e urbanismo, Águas Claras exemplifica a falta de vontade política do próprio autor do projeto, e de seu grupo político, de assegurar qualidade de vida da população e de enfrentar com rapidez as forças da especulação imobiliária que se mostram destrutivas e oportunistas”.

EXPEDIENTE

Grande reportagem desenvolvida para o Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo no ano de 2019, para o Centro Universitário de Brasília - UniCEUB

POR RAFAELA MARTINS DOS SANTOS

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Conteúdo de áudio: Alisson Marinho

Imagens do drone: Raony Gomes

Edição de imagem: Dener Leon

Arte e finalização do site: Igor Brandão

Edição e orientação: Luiz Claudio Ferreira

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